segunda-feira, julho 06, 2015

Podem me virar do avesso que não me viro, sou eu mesmo do avesso como do direito, e mesmo que me esquartejem e espalhem os pedaços continuarei sendo eu mesmo, como um caleidoscópio é um caleidoscópio e não um simples jogo de espelho, um caleidoscópio até que o matem por ter sido mais que um simples joguete, mais capaz de beleza do que quem o fez ou desfez.

Meu raciocínio lhes pertence mas não a minha consciência, podem me fazer girar como um pião mas é em torno de mim que eu giro, não em torno deles, este o meu sistema solar e desafio-os a arrancar-me o sol como podem fazer com o seu, eles que se julgam os donos de tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que estão sempre voltando. 

Enquanto eu puder pensar eu pensarei, lúcido ou não pouco me importa, e nem preciso de lucidez para lhes cuspir no rosto até o fim, basta-me apenas esta vontade de cuspir, esta ânsia e esta força incoercível, de que sou o único deus porque nasceu de mim e não deles: como lhes cuspo agora e até depois de morto - e mesmo já antes de haver nascido.

Não lhes tenho ódio mas desprezo, como nunca tive ódio à polícia ou aos donos da polícia, nem a todas as polícias do mundo reunidas, que apenas procuravam, e mal, imitar o exemplo vindo de cima, com as suas providências copiadas da Divina Providência, punindo os inocentes e sobretudo os culpados, os culpados de serem inocentes, como se punissem o canceroso e o animal de duas cabeças. 

Esta história de me plantar aqui como árvore, nesta ou em qualquer esquina, é para Eles o cúmulo da humilhação, quando os únicos humilhados serão eles mesmos, assim forçados a me manter nesta posição forçada, hora ou séculos seguidos, como se eu fosse uma presa muito mais importante do que sou, ou talvez então porque o seja, mortal porém imortal enquanto vivo. Como árvore lhes cuspo na cara do mesmo jeito, mesmo que me derrubem e sobretudo se me derrubam - e, enquanto não cuspo, posso ouvir nitidamente os pássaros que me procuram como árvore, embora Eles também tenham prendido os pássaros ou os transformado em pedras ou em prótons e elétrons. 

Espero pelo pior, mas já a esta altura o pior será apenas mais um motivo para eu lhes lançar meu testemunho no rosto, o meu testemunho e o meu cuspo, e não apenas em meu nome mas no de todos, desde que o homem foi inventado e com ele o câncer e a bomba atômica, a cadeira elétrica ou o amor não-correspondido. 

Uma árvore: a esses pândegos falta-lhes sequer imaginação!

Campos de Carvalho. A chuva imóvel. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Páginas 113-115. 

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