Podem me virar do avesso que não me viro, sou eu mesmo
do avesso como do direito, e mesmo que me esquartejem
e espalhem os pedaços continuarei sendo eu mesmo, como
um caleidoscópio é um caleidoscópio e não um simples jogo
de espelho, um caleidoscópio até que o matem por ter sido
mais que um simples joguete, mais capaz de beleza do que
quem o fez ou desfez.
Meu raciocínio lhes pertence mas não a minha consciência,
podem me fazer girar como um pião mas é em torno de
mim que eu giro, não em torno deles, este o meu sistema
solar e desafio-os a arrancar-me o sol como podem fazer com
o seu, eles que se julgam os donos de tudo e são os donos de nada, e se apavoram com o Nada de que vieram e a que estão
sempre voltando.
Enquanto eu puder pensar eu pensarei, lúcido ou não
pouco me importa, e nem preciso de lucidez para lhes cuspir
no rosto até o fim, basta-me apenas esta vontade de cuspir, esta
ânsia e esta força incoercível, de que sou o único deus porque
nasceu de mim e não deles: como lhes cuspo agora e até
depois de morto
-
e mesmo já antes de haver nascido.
Não lhes tenho ódio mas desprezo, como nunca tive ódio
à polícia ou aos donos da polícia, nem a todas as polícias do
mundo reunidas, que apenas procuravam, e mal, imitar o
exemplo vindo de cima, com as suas providências copiadas
da Divina Providência, punindo os inocentes e sobretudo
os culpados, os culpados de serem inocentes, como se punissem
o canceroso e o animal de duas cabeças.
Esta história de me plantar aqui como árvore, nesta ou
em qualquer esquina, é para Eles o cúmulo da humilhação,
quando os únicos humilhados serão eles mesmos, assim forçados a me manter nesta posição forçada, hora ou séculos
seguidos, como se eu fosse uma presa muito mais importante
do que sou, ou talvez então porque o seja, mortal porém
imortal enquanto vivo. Como árvore lhes cuspo na cara
do mesmo jeito, mesmo que me derrubem e sobretudo se
me derrubam
-
e, enquanto não cuspo, posso ouvir nitidamente os pássaros que me procuram como árvore, embora
Eles também tenham prendido os pássaros ou os transformado
em pedras ou em prótons e elétrons.
Espero pelo pior, mas já a esta altura o pior será apenas
mais um motivo para eu lhes lançar meu testemunho no
rosto, o meu testemunho e o meu cuspo, e não apenas em
meu nome mas no de todos, desde que o homem foi inventado
e com ele o câncer e a bomba atômica, a cadeira elétrica ou o amor não-correspondido.
Uma árvore: a esses pândegos falta-lhes sequer imaginação!
Campos de Carvalho. A chuva imóvel. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Páginas 113-115.
Mais em: https://mega.co.nz/#F!p0oCGI5B!geFILqRgVB8ceEGHKs_5yg
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