Ocorreu-me
agora – bem agora – que estou outro. É certo que venho repetindo – quase – isso
há dias para mim e para alguns. Mas não me refiro ao sujeito – ao elemento que
aceito ser nas cadeias todas que me prendem ao curso natural da existência – Não
estou falando do eu que pode ter umas consciências. Tudo isso muda.
Absolutamente: tudo isso passa.
Avançamos, regredimos, aprendemos, esquecemos, desprezamos... As ideias
atravessam a cabeça. Os desejos exigindo respostas ágeis e práticas do corpo
também sofrem alterações. A fome de entender o que nos cerca continua muito
parecida com uma espécie peculiar de libido: hora ou outra entra em conflito
com as parte mais racionais e frias da carne, excita nos locais mais
improváveis, nega seus fogos e artifícios no momento preciso e produz orgasmos insólitos
(como se todos não o fossem) quando nem se pensava naquilo. Aquilo entenda-se
isso: a vida mesmo. O que não ajuda em nada quem ainda quer captar o que eu
tento apontar aqui. Sei. Insisto no óbvio: mudamos, sabemos que mudamos –
embora às vezes a percepção disso seja tardia – e aceitamos a necessidade de mudança.
Eu por exemplo (como estava tentando dizer) só agora percebo que o poema –
assim como os corpos belos ou grotescos com os quais lidamos quase sempre ou
quase nunca – interfere profundamente nesse processo. Vejamos: Meu poema me
altera o jeito de encarar certa atitude humana que ontem me espantava hoje me
enoja e eu, de forma muito ingênua –para não dizer patética – penso que
disponho de todas as suas maneiras. Os poemas alheios me constrangem na
dimensão absurda de suas revelações sobre mim, sobre o que sinto, sobre o que
ainda ouso defender. Como leitor eu nunca sou/serei o mesmo. O maior risco de
permitir a invasão do texto nesses terrenos perigosos do sentimento é o extravio de qualquer chão.
Eu poderia jurar – antes – que estava imune a esse tipo de magia negra. Que
obra alguma teria tal poder ou permissão de minha parte para devassa tão
profunda de coisas minhas “de verdade”. É claro que ao escrever eu poderia ter todos
os feitiços possíveis a meu dispor, porém não seria bobo de deixá-los virarem
sobre minha própria cabeça. Engano – muito engraçado para os outros – quase
trágico para quem o engendra. Agora não é só o acontecimento “normal” (já que o
poema é muito um acontecimento também, mas de “aberração”, uma anomalia
provocativa), não é só a fossa, o porre, a bancarrota que atravessam a gente
num plano mais pragmático, é também esse distúrbio nas pupilas dilatadas, esse
instante de possessão demoníaca ou coisa (desa)parecida, essa incontornável
overdose de imagem, som e sentido. Descubro que estava correto quem não quis
contar: o poema nem carece de (r)existir, (assim como não carece de cigarros e
doses mais fortes de bebidas quentes). O poeta? Sim? De quase isso tudo? (r)existir
soa melhor que meramente existir ou resistir. Ser outro na constatação: estou de
pé no mesmo lugar ou de volta ao lugar anterior, mas não sendo mais – nunca – o
mesmo. estar outro. A cada leitura. A cada palavra assentada no subsolo da voz
na folha. Acho que tem muita beleza o gesto de admitir isso ao mesmo tempo em
que é melodramático. Tragicômico? Homem aceitando fragilidade é sempre assim?
Não se meta a escrever quem não tem estômago para se olhar nos espelhos. Aceitar
a possibilidade de os estilhaços não colarem é um passo interessante. O
primeiro, acredito com mais força agora,
é dizer que não reconheço mais quem escreveu a primeira frase desse texto.
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